No dia 19 de outubro o presidente Jair Bolsonaro assinou um Projeto de Lei destinado à criação de um Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador no Brasil. Desde então, essa notícia tem movimentado bastante o ecossistema, gerando curiosidades.
Todos querem saber: afinal, o que muda com o Marco Legal das Startups?
A verdade é que a resposta para essa pergunta pode ser muito frustrante para quem está atuando no ecossistema e esperando ansiosamente por mais facilidades e incentivos. Por enquanto, nada muda.
Isso porque o Marco Legal ainda não está em vigor. O que existem são projetos de lei que buscam criar esse arcabouço jurídico próprio para as startups, mas entre o projeto e a entrada em vigor de uma lei existe um caminho a ser percorrido.
O objetivo deste artigo é justamente esclarecer, tanto para você que é empreendedor ou agente do ecossistema de startups, quanto para você que é advogado ou estudante de Direito, um pouco do que já aconteceu nesse percurso, em que ponto atualmente estamos no caminho e o que ainda deve vir pela frente até que finalmente tenhamos uma legislação em vigor.
Além disso, vamos pontuar também algumas das propostas trazidas pelos projetos de lei que visam criar um Marco Legal das Startups e fazer uma análise de seus impactos no ecossistema e no cotidiano de seus diversos atores.
Comecemos reforçando: o Brasil ainda não tem um Marco Legal das Startups.
Antes de adentrarmos a discussão dos projetos de lei que se destinam à criação do marco, vale a pena fazer uma breve incursão pelas leis que já existem no país que tratam de forma pontual de importantes aspectos relacionados ao ecossistema e que influenciam no seu desenvolvimento.
COMPREENDENDO O CONTEXTO: O AMBIENTE REGULATÓRIO DAS STARTUPS NO BRASIL
A inovação e a tecnologia são tratadas como temas de importância pela nossa Constituição Federal. Em seu art. 218, há a determinação de que o Estado deve promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação. Essa promoção e incentivo envolvem atividades como criação de políticas públicas específicas, concessão de incentivos fiscais, criação e manutenção de entidades e criação de leis específicas para apoiar e estimular as empresas que invistam em pesquisa e desenvolvimento de tecnologia adequada ao país.
Em se tratando de matéria importante sob a ótica da Constituição Federal, natural que diversas leis tenham sido criadas para a consecução desses objetivos de promoção e incentivo da inovação e tecnologia. Como exemplos temos a criação da Lei dos Softwares (Lei 9.609/98), que dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual de programa de computador e sua comercialização no país; a Lei da Inovação (Lei 10.973/04), que dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo e a Lei do Bem (Lei 11.196/05) que cria a concessão de incentivos fiscais às pessoas jurídicas que realizarem pesquisa e desenvolvimento de inovação tecnológica. Todas essas legislações são atualmente aplicadas às startups.
Com o desenrolar do desenvolvimento tecnológico e das empresas de tecnologia e que se desenvolvem em ambiente de incertezas e riscos, temos também a promulgação de leis como o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14), Lei do Investidor Anjo (Lei Complementar 155/2016) e as recentes Lei Geral de Proteção de Dados (13.709/2018) e Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019), que impactam diretamente as startups, as empresas de base tecnológica e o empreendedorismo inovador.
O resumo dessa incursão pela legislação brasileira revela que o ambiente regulatório tem se desenvolvido na direção de atender às necessidades do empreendedorismo inovador. Todavia, ao mesmo tempo temos que o fato de existirem várias legislações esparsas representa um desafio.
Importante ainda compreender que o debate acerca das questões jurídicas relativas às startups no Brasil está em processo de amadurecimento e o ambiente jurídico, sob muitos aspectos, ainda é de insegurança, especialmente em questões como relações societárias e trabalhistas, por exemplo.
No aspecto societário, aplicam-se as leis societárias existentes e que foram concebidas para empresas tradicionais, e a falta de um arranjo societário capaz de abranger as necessidades das startups desencadeia dificuldades como tributação, acesso a capital e proteção dos sócios.
No âmbito trabalhista também ficamos amarrados aos tradicionais arranjos que não contemplam muitas das necessidades e dores das startups, de modo que muito ainda precisa ser revisto e discutido para que se possa criar um ambiente regulatório mais propício para o desenvolvimento de startups no Brasil.
EM QUE
PONTO ESTAMOS?
Embora ainda não exista um Marco Legal das Starups, importante lembrar que já existe um conceito legal de startups no Brasil, embora ele possa sofrer modificações quando da entrada em vigor de um Marco Legal. Esse conceito está previsto na Lei Complementar 167/2019. Essa lei institui o Inova Simples – um regime especial simplificado que concede um tratamento tributário diferenciado às iniciativas empresariais de caráter incremental ou disruptivo que se autodeclararem como startups ou empresas de inovação.
Conforme o parágrafo primeiro do art. 65-A, considera-se startup “a empresa de caráter inovador que visa a aperfeiçoar sistemas, métodos ou modelos de negócio, de produção, de serviços ou de produtos, os quais, quando já existentes, caracterizam startups de natureza incremental, ou, quando relacionados à criação de algo totalmente novo, caracterizam startups de natureza disruptiva”.
Complementa a definição acima o parágrafo segundo do mesmo artigo: “As startups caracterizam-se por desenvolver suas inovações em condições de incerteza que requerem experimentos e validações constantes, inclusive mediante comercialização experimental provisória, antes de procederem à comercialização plena e à obtenção de receita”.
Embora paire esse conceito legal de startups trazido pela LC 167/2019 e exista a iniciativa de tributação simplificada pelo Inova Simples, ressalta-se que o novo regime ainda não está em funcionamento e carece de regulamentação. Entendo, todavia, que a LC 167/2019 é importante precursora nesse caminho para a criação de um Marco Legal.
A ânsia pela criação de um Marco Legal das Startups não é nova. Vários estudos já vêm sendo desenvolvidos há algum tempo nesse sentido, com o apoio da sociedade civil, Poder Executivo e diferentes frentes parlamentares, que desaguaram em dois projetos de lei.
Há um projeto de lei complementar de iniciativa da Câmara dos Deputados que visa instituir o marco e tramita desde o ano passado – o PLC 146/2019.
Mas o Presidente não assinou esse ano um projeto de lei para criação do marco?
Sim, mas para compreender porque existem esses dois projetos e com um lapso temporal aparentemente tão grande entre eles, precisamos explicar um pouquinho de como funciona o processo de criação de leis no Brasil.
A Constituição Federal prevê em seu art. 61 que a criação de Lei Complementar (que é o tipo legislativo dos dois projetos existentes que visam criar um Marco Legal das Startups) pode ser de iniciativa de qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República e também aos cidadãos.
Assim, tanto a Câmara quanto o Presidente possuem legitimidade e, portanto, podem propor Lei Complementar criando o Marco Legal das Startups. Por isso o Presidente assinou o PLC 249/2020.
O que acontece quando se tem dois projetos de lei sobre uma mesma matéria?
Nesse caso, por força de regimento interno, o projeto mais recente (PLC 249/2020, de iniciativa do Presidente) foi apensado ao projeto mais antigo (PLC 146/2019, de iniciativa da Câmara) e eles passam a tramitar de forma conjunta no Congresso Nacional para discussões nas Comissões e votação.
Aqui, um ponto precisa ser ressaltado: por despacho do presidente da Câmara, a tramitação desses dois projetos passa a acontecer em regime de urgência, ou seja, todo o processo de discussões e votações necessários para a criação da lei acontecerá de forma mais célere. Isso ocorreu porque a pauta de inovação e startups tem sido tratada como prioritária no Brasil já há algum tempo, sendo um tema politicamente atrativo há mais de dez anos em virtude da significativa influência do ecossistema de startups no desenvolvimento econômico e social.
No momento em que escrevo essas considerações (10/11/2020), estamos aguardando o Parecer do Relator na Comissão Especial formada especialmente para examinar as matérias referentes à criação de um Marco Legal das Startups.
PROJETO DE
LEI COMPLEMENTAR
146/2019
Para a criação do Projeto de Lei 146 foi feito um movimento prévio, que antecedeu até mesmo as consultas públicas, de grupos de trabalho focais que buscavam debater os desafios enfrentados pelas startups e empreendedores no Brasil em diferentes frentes (trabalhista, tributária, societária, etc).
Interessante notar que, no bojo desse projeto, há um capítulo inicial dedicado a definições importantes para o ecossistema de startups, tais como startup, crowdfunding, fundo de investimento, fundo de investimento em participações (FIP), aceleradoras, investimento-anjo, investidor-anjo, seed capital, venture capital, dentre outros. Por um lado, a presença dessas definições pode ser positiva para alinhar alguns entendimentos e elencar agentes e conceitos importantes para o ecossistema. Por outro, a simples apresentação de conceitos pode não ser suficiente para se obter a efetividade que se espera de uma nova legislação.
No que tange às questões societárias, o PLC 146/2019 propõe a criação das Sociedades Anônimas Simplificadas (SAS). Isso porque os atuais modelos societários previstos na legislação brasileira não são muito vantajosos para as startups. O modelo de sociedade anônima seria mais atrativo, mas em função das obrigações de manutenção de uma S/A e das implicações fiscais, acaba se tornando inviável. A criação de um novo tipo societário é, portanto, uma tentativa de atender às demandas de modelo de negócio próprias das startups. As SAS poderão ser constituídas desde que a receita bruta anual da empresa esteja dentro dos limites estabelecidos para microempresas e empresas de pequeno porte.
Há também o tratamento de pontos como a responsabilidade dos investidores e a abertura e fechamento das empresas, com o reforço da figura do Inova Simples, o que reforça também a necessidade de tributação simplificada.
O mercado das startups apresenta demandas muito singulares relativamente a questões como jornada de trabalho e forma de remuneração. As questões trabalhistas são levantadas e o projeto prevê a criação de novos arranjos para relações trabalhistas em startups, como a figura do contrato por prazo determinado com duração máxima de 4 anos e do contrato de experiência com prazo não superior a 180 dias. Há também a previsão de remuneração variável aos empregados, conforme critérios que consideram a eficiência e a produtividade da startup e até mesmo outros parâmetros que sejam acordados pelas partes. A remuneração poderia ainda ocorrer por plano de opção de compra de ações, de modo que os funcionários poderiam vir a participar como acionistas da empresa em contrapartida ao serviço prestado.
Há capítulos destinados ao desenvolvimento regional por meio de investimentos empreendedores (capítulo V), cujos dispositivos fazem alterações na Lei nº 7.827/89 que institui fundos de investimentos regionais; à participação do Estado em startups (capítulo VI), trazendo alterações à Lei nº 9.491/97 e mais alterações à LC 123/2006 (também alterada pela LC 167/2019) são trazidas no capítulo VIII que trata de incentivos à investimentos.
Por fim, importante mencionar que vale a pena a leitura da justificativa trazida ao final do PLC 146/2019, que elenca como objetivos estabelecer condições mais favoráveis à criação de startups no país e colaborar para a inserção do Brasil na tendência mundial de apoio e incentivo ao desenvolvimento startups, dado seu aspecto inovador e seu potencial de mudar a curva de uma economia.
PROJETO DE
LEI COMPLEMENTAR
249/2020
O projeto de iniciativa do Presidente é mais sucinto e deixa de tratar de diversos aspectos relevantes contemplados no PLC 146/2019.
Em suas disposições iniciais, o PLC 249/2020 elege como objetivos I) estabelecer os princípios e as diretrizes para a atuação da administração pública no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; II) apresentar medidas de fomento ao ambiente de negócios, ao aumento da oferta de capital para investimento em empreendedorismo inovador; e III) disciplinar a licitação e a contratação de soluções inovadoras pela administração pública.
Percebemos, desse modo, que o enfoque do projeto é a relação das startups e do empreendedorismo inovador com a Administração Pública, sendo que um dos princípios que o regem o incentivo à contratação pela administração pública, de soluções inovadoras elaboradas ou desenvolvidas por startups.
Nesse sentido, as disposições do PLC 249/2020 poderiam contribuir para uma modernização da Administração Pública, trazendo inovação. Acredito, entretanto, que os desafios para essa relação startups/Administração Pública ainda são grandes, especialmente em virtude dos princípios que regem a Administração Pública, cuja atividade é vinculada à lei, o que pode diminuir as margens para a criação de um ambiente de experimentação e inovação aberta.
O projeto trata também do enquadramento de empresas startups, trazendo um conceito que abrange limites, tanto temporais de atuação, quanto no que diz respeito ao faturamento.
No que tange ao tempo de atuação temos a limitação de até seis anos de inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia para enquadramento como startup.
Quanto ao faturamento, o bruto anual deve ser de até R$ 16.000.000,00 ou no ano-calendário anterior ou de R$ 1.333.334,00 multiplicado pelo número de meses de atividade no ano-calendário anterior, quando inferior a doze meses).
Temos o capítulo III do projeto destinado a tratar de instrumentos de investimento em inovação, onde se faz a previsão de aportes em startups por pessoas físicas ou jurídicas e a possibilidade de tal capital não integrar o capital social da empresa quando forem adotados instrumentos como contrato de opção ou subscrição de cotas, contrato de opção de venda e contrato de mútuo conversível, dentre outros. Tal capítulo faz ainda menção à Comissão de Valores Mobiliários que deverá regulamentar os aportes de capital por parte de fundos de investimento.
Há um capítulo subsequente dedicado a tratar do fomento à pesquisa, ao desenvolvimento e à inovação, que trata de fundos patrimoniais e fundos de investimento em participações – FIP, autorizados pela CVM nas categorias de capital semente, empresas emergentes e empresas com produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação.
O capítulo V se dedica a dispor sobre a criação de um ambiente regulatório experimental, compreendido este como “o conjunto de condições especiais simplificadas para que as pessoas jurídicas participantes possam receber autorização temporária dos órgãos e das entidades com competência de regulamentação setorial para desenvolver modelos de negócios inovadores e testar técnicas e tecnologias experimentais mediante o cumprimento de critérios e limites previamente estabelecidos”. Neste ponto, vale ressaltar que a adoção de ambientes regulatórios experimentais, também conhecidos por sandbox regulatórios, tem sido ampliada, especialmente em mercados muito regulados, como é o caso do mercado financeiro que utiliza para promover o desenvolvimento das fintechs.
No capítulo VI temos a parte mais comentada do projeto – Da contratação e soluções inovadoras pelo Estado, que determina regras específicas para licitação, institui o contrato público para solução inovadora e trata do contrato de fornecimento.
A QUESTÃO
DO CONCEITO
Além da diferença de aspectos abrangidos por cada um dos projetos, entendo que merece destaque um ponto bastante importante e que é tratado de forma distinta nos projetos: a conceituação de startups.
O conceito de startups não é consenso no Brasil e no mundo e isso representa um desafio para uma legislação específica. Talvez esse seja um ponto que precise ser pensado com cautela ainda, no decorrer dos estudos e votações, a fim de que não se restrinja sobremaneira, dificultando o acesso a algumas empresas às facilidades que serão trazidas por um futuro Marco Legal mas, ao mesmo tempo, tendo o cuidado de se identificar que tipo de empresa se deseja estimular com a criação do Marco Legal e quais são suas caraterísticas atualmente, a fim de que, a partir daí, possam ser pensados os demais aspectos legislativos, incentivos e políticas públicas destinadas às startups.
REFLEXÕES
FINAIS
A criação de um Marco Legal das Startups vai criar um norte para as futuras transformações que sejam necessárias a fim de promover e incentivar o desenvolvimento da inovação e da tecnologia no Brasil. E algo que considero importante: essas diretrizes serão criadas dentro de um contexto brasileiro.
Diversos países estão à frente do Brasil em termos de regulação e incentivos e desenvolvimento de mecanismos de apoio às startups, como Estados Unidos, França, Inglaterra, Singapura, Israel, Itália, Portugal, Espanha, e Argentina.
Muitos dos instrumentos e práticas que adotamos, a exemplo do vesting, tem são inspirados ou transplantados de sistemas jurídicos estrangeiros. A incidência de aspectos legais transplantados de outras jurisdições pode trazer nebulosidade à compreensão do ecossistema de startups brasileiro, que se desenvolve em um contexto próprio, dotado de características peculiares ao direito, à sociedade, à economia e ao ambiente de negócios no Brasil, contribuindo no desenvolvimento econômico e social do nosso país.
Além disso, a ampliação do debate jurídico contribuirá para reflexões e construção de políticas públicas que possam favorecer de forma mais efetiva o ecossistema de startups brasileiro, oferecendo um olhar mais técnico.
Estimular a criação de um círculo virtuoso de mais criatividade, inovação e competitividade à economia, a exemplo do que existe no Vale do Silício e em outros polos mundiais de inovação e tecnologia é muito vantajoso para o desenvolvimento de um país.
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Camilla Pinheiro • Advogada especialista em Startups e Direito e Tecnologia e professora universitária.
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